Aonde chega a Doença da Negação
Medatual - Por Camila Miquelim
Filho de Apolo, deus da
saúde, Asclépio foi tirado do ventre de sua mãe no momento em que ela se
encontrava na pira funerária. Por sua vitória sobre a morte, tornou-se o deus
da medicina. No entanto, o que poucas pessoas sabem é que foi o centauro Quirón
que lhe ensinou tudo o que sabia sobre a arte médica. Paradoxalmente, este, que
dominava os poderes curativos de diversas ervas conseguindo curar qualquer
doença, tinha, na verdade, uma ferida incurável, causada por uma flecha
envenenada que o atingiu enquanto tentava salvar outro centauro. Eis o mito que
assombra parte dos profissionais de saúde: o curador que não consegue se curar.
Assim como na mitologia grega, diversos
profissionais, para fugirem do estresse do dia-a-dia, embarcam em um caminho
perigoso e difícil de voltar. O uso de drogas por médicos e residentes ainda é
um tabu na sociedade como um todo, o que dificulta o tratamento dos usuários.
Em 1903, o JAMA (Journal of the American Medical Association) já apontava a necessidade de estudar os aspectos
psíquicos dos médicos. Segundo o editorial, os profissionais de saúde, para
escaparem de seus problemas, desenvolviam uma série de mecanismos, como o uso
de drogas, mudanças comportamentais, até, finalmente, chegarem ao suicídio. Cem
anos depois, um novo artigo homônimo mostrou que nada tinha sido feito para
aliviar os problemas médicos desde então, e que o nível de dependência química
havia evoluído a altos níveis em relação à população.
Assim como o antigo provérbio, “Médico, cura-te a
ti mesmo” (Lucas 4:23), a realidade traz como dissonância dois fatores: para
conquistar a cura, é necessário acreditar que se está doente e que apenas um
profissional capacitado é capaz de lhe ajudar. Essa é uma das maiores
dificuldades médicas. “Infelizmente, alguns médicos são prepotentes, acham que
podem tudo e não buscam ajuda porque acreditam que estão sob controle”, afirma
Daniel Cordeiro, psiquiatra da Unidade Pública de Tratamento de Dependência de
Drogas do Estado de São Paulo. “Um médico costuma procurar ajuda não quando
percebe que está viciado em algum medicamento ou droga, mas porque,
provavelmente, a ‘casa caiu’”, complementa Alessandra Diehl, médica psiquiatra,
coordenadora da enfermaria de dependentes químicos da UNIFESP. “Geralmente,
alguém descobriu o problema ou o próprio médico não conseguiu realizar algum
procedimento. Nesses casos, quando ele chega até nós, já está, infelizmente, em
um estágio muito grave”, explica a especialista.
Entre as drogas mais usadas pelos profissionais de
saúde, estão álcool, tabaco, maconha, alucinógenos, cocaína, anfetamina,
anticolinérgicos, solventes, tranquilizantes, opiáceos, sedativos e barbitúricos.
De acordo com Cordeiro, uma colega de profissão,
paciente de Alessandra, tomava anfetamina havia 15 anos e só parou porque
estava entrando em estado psicótico. “Ela teve várias oportunidades de procurar
ajuda, mas só buscou porque estava ouvindo vozes”, afirma. Casos de
automedicação e autoprescrição são comuns.
Segundo recente estudo publicado na revista da
Associação Médica Brasileira, feita por Hamer Alves, pesquisador da Unidade de
Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD), do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP,
e professor responsável pelo Curso de Especialização em Dependência Química via
Internet, a substância mais consumida é o álcool associado às drogas (36,8%).
Das pessoas estudadas, 34,3% declararam usar apenas álcool, e 28,3%, somente
drogas. Foram coletados dados de 198 médicos em tratamento ambulatorial por
dependência química, por meio de um questionário. A maioria dos indivíduos eram
homens (87,8%), casados (60,1%) e com idade média de 39,4 anos. Destes, 66% já
tinham sido internados devido ao uso de álcool e/ou drogas. Ainda segundo a
pesquisa, as especialidades que detêm mais usuários são Clínica Médica,
Anestesiologia e Cirurgia.
O estudo também mostrou que o usuário leva cerca de
um 3,7 anos entre a identificação do problema e a procura do tratamento. Entre
os pesquisados, 30,3% buscaram terapia de forma voluntária. Quase um terço dos
deles teve problemas no casamento, sofreram com o desemprego, se envolveram em
acidentes automobilísticos e tiveram problemas profissionais, alguns, inclusive,
junto aos Conselhos Regionais de Medicina. “Levando em conta a pressão e o
estresse no trabalho médico, é como se o profissional usasse a droga como uma
forma de compensação”, afirma Cordeiro.
Muitas vezes, as pessoas ao redor veem o problema,
mas preferem se omitir acreditando estar fazendo bem ao colega. “Observamos, em
diversas ocasiões, que um médico não quer falar do outro porque isso pode soar
como denúncia”, diz Alessandra. “E ele também não quer ser responsável caso o
colega perca o emprego ou tenha problemas com o Conselho Regional de Medicina.
Então, prefere ficar em silêncio, ainda que saiba do problema.”
A família também pode dificultar o processo de
tratamento. “A um paciente, residente do primeiro ano de Anestesia, foi
prescrita internação. Seu pai, porém, não o deixou ser internado, pois, com
isso, perderia a residência”, conta Cordeiro. “Eles não querem encarar o
problema. Sua mãe o encontrou convulsionando no banheiro de casa, e ainda assim
decidiram não interná-lo”, revolta-se.
Segundo ambos os médicos, o uso de drogas comumente
chega a um determinado estágio que se torna um ciclo vicioso. “Acontece muitas
vezes de, por exemplo, o médico querer parar de beber para não fazer uma
cirurgia embriagado, mas se não beber, suas mãos tremem…”, conta Cordeiro. “Já
tive um paciente, pediatra, que chegou a confessar não ter se lembrado do que
prescreveu aos seus pacientes”.
As drogas mais usadas ainda são as de prescrição
médica, no entanto há casos de maconha, cocaína ecrack.
“Podemos ver que o uso de crack está
se alastrando na população. E, claro, os médicos não ficam de fora…”, afirma
Alessandra. “Temos o caso de uma médica em tratamento que estava, inclusive, em
situação de rua. E ela só veio buscar ajuda porque foi estuprada e levou uma
surra de um traficante. Essa é uma condição extrema, por exemplo.”
Profilaxia
É importante alertar sobre o uso de drogas desde
quando o estudante entra na faculdade de medicina. Pesquisa publicada na
revista Addictive
Behaviors, em 2008, revelou que, entre os estudantes,
o álcool é a substância mais usada. Cerca de 80% dos homens e 72,5% das
mulheres declararam o consumo. Entre os primeiros anos acadêmicos, há um
crescimento no uso de maconha entre os rapazes, já as mulheres acabam, nos
últimos anos, fazendo mais uso de tranquilizantes (de 3,4% no primeiro ano para
11,4% no quarto ano). “É um absurdo que futuros médicos usem drogas logo na
entrada da faculdade”, diz Cordeiro. “No trote, por exemplo, há vários casos de
excessos. Temos de alertar desde essa época sobre os riscos e os cuidados que
todos devem ter. É necessário combater o uso de drogas em todos os cursos,
principalmente nos que envolvem futuros profissionais de saúde.”
Matéria encaminhada pelo COMAD RJ
Um comentário:
muito bacana seu site. muito bom seu artigo. parabéns.
veronica
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